A história da transferência abusiva dos 500 milhões de dólares para Londres tem sido detalhadamente contada por Rafael Marques neste portal desde Janeiro de 2018 (veraqui, aqui e aqui).
Não vamos recapitulá-la, apenas anotar que o ponto de partida para a trama toda foi uma ordem dada pelo então presidente da República, José Eduardo dos Santos, na sede do MPLA, pouco tempo antes de abandonar o poder.
Foi JES quem chamou o governador do Banco Central, Valter Filipe – agora arguido – e o ministro das Finanças, e lhes entregou o dossier da operação; e foi ele quem chamou à mesma sala o filho – também hoje arguido –, para explicar a operação.
Mais tarde, a 10 de Agosto de 2017, foi ainda JES quem, no despacho aposto em informação apresentada por Valter Filipe, autorizou o desenrolar da operação.
Consequentemente, pelo menos na aparência, o mandante do crime foi José Eduardo dos Santos. Todas as acções fundamentais são efectuadas pelo antigo presidente.
Qualquer interpretação dos factos obriga a colocar duas hipóteses:
- JES é o verdadeiro autor moral dos crimes, e por isso, o responsável máximo pela associação criminosa que desenvolveu a operação de desvio de meio bilião de dólares;
- JES está doente, e foi enganado pelo filho Zenú e seus acólitos.
De uma maneira ou de outra, a posição de JES é insustentável: ou é o chefe do crime, ou tem de testemunhar contra o filho, dizendo que está patareco e foi enganado…
Na dogmática do direito penal, designadamente nas regras implícitas da comparticipação criminal (isto é, quando há mais do que uma pessoa a praticar o crime), estruturadas de acordo com o princípio da legalidade, o Ministério Público não pode eliminar arguidos que estejam objectivamente envolvidos nos factos. Isto é, não pode indiciar apenas algumas pessoas e deixar outras de fora, quando há a possibilidade de as pessoas que ficam de fora também serem parte na prática do crime.
Neste caso, foi JES quem deu as ordens, foi JES quem autorizou a operação. Ou foi mandante do crime, ou foi enganado. Neste momento, o MP não sabe qual é a resposta, e tem de investigar.
Nesse sentido, não se pode deixar o antigo presidente fora da investigação. JES tem de ser constituído arguido, para dar a sua versão da história da transferência dos 500 milhões de dólares para Londres.
Virão os juristas de antanho esbracejar, dizendo que tal proposição é impossível, uma vez que JES goza das imunidades previstas no artigo 127.º da Constituição angolana, que torna o presidente da República praticamente inatacável do ponto de vista legal. Acontece que JES não é já presidente da República, mas antigo presidente da República, pelo que se lhe aplica o artigo 133.º da Constituição, e não o 127.º. Não goza das imunidades atribuídas ao presidente da República. Estas só lhe eram aplicáveis enquanto em exercício de mandato.
Poder-se-á argumentar que os factos que lhe são imputáveis ocorreram na altura do seu mandato. Isso é verdade, mas só agora estão a ser investigados, e a interpretação das imunidades atribuídas ao presidente da República tem que ser formulada de modo restritivo, levando em consideração a figura institucional da Presidência, e não a pessoa física concreta.
As imunidades protegem o exercício de um cargo soberano, e não as pessoas concretas. Tal interpretação obedece, aliás, ao desiderato do artigo 23.º da Constituição, segundo o qual o princípio da igualdade é o esteio fundamental da ordem jurídica angolana. Ora, sendo a concessão de imunidade uma derrogação desse princípio da igualdade, pois confere a cidadãos iguais prerrogativas diferentes, facilmente se percebe que qualquer avaliação que se faça da imunidade tem de ser reduzida ao estritamente necessário.
Assim, o artigo 127.º da Constituição aplica-se apenas ao presidente da República em exercício de funções, na perspectiva da sua dignidade institucional e, uma vez terminado o mandato, não tem alcance pessoal e subjectivo.
Por estas razões, não temos qualquer dúvida de que actualmente JES goza apenas das imunidades previstas no artigo 133.º da Constituição. Estas imunidades são idênticas às dos membros do Conselho da República (art.º 133, n.º 1). Por sua vez, as imunidades atribuídas aos membros do Conselho da República são iguais às conferidas aos deputados à Assembleia Nacional (art.º 135.º, n.º 3).
As imunidades de que gozam os deputados à Assembleia Nacional estão previstas no artigo 150.º, o qual prescreve:
“1. Os Deputados não respondem civil, criminal nem disciplinarmente pelos votos ou opiniões que emitam em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional, no exercício das suas funções.
2. Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.
3. Após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo.”
É esta a norma que se aplica, presentemente, à situação de JES. Pela leitura da norma, verifica-se que ele pode ser constituído arguido, sem qualquer restrição, e contra ele pode ser instaurado um processo criminal pela transferência abusiva dos 500 milhões de dólares.
E pode também ser acusado e pronunciado. Só nessa altura deverá a Assembleia Nacional deliberar se lhe retira a imunidade para ele ir a julgamento ou não. Mas até esse momento, não há nada na Constituição que impeça que JES seja constituído arguido e investigado.
Em conclusão, no caso da transferência dos 500 milhões dólares, em que Zenú e Valter Filipe já são arguidos, é possível e desejável constituir JES como arguido e investigar se ele foi enganado pelo filho ou se é o mandante efectivo do crime.
Trata-se de um imperativo nacional.
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